Felipe Seligman

Na <a href="https://www.jota.info/uma-decada-depois-da-caixa-preta">primeira reportagem</a> da série sobre os dez anos da Reforma do Judiciário, o Jota mostrou como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, logo no início de seu primeiro mandato, revelou à sociedade que o tema seria prioritário para seu governo. Naquele momento, porém, ele e seu ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, pensavam que fariam o que não conseguiram fazer durante o processo da Constituinte: criar um órgão de controle totalmente externo.
Em sua posse, Bastos afirmou que "o grande desafio” seria uma reforma “radical”. Dois meses depois, quando Lula discursava em Vitória e conclamava a abertura da tal “caixa-preta”, o novo órgão ainda não havia iniciado os trabalhos e os jornais diziam que a promessa do então novo ministro ainda engatinhava. Consideravam também que a reforma do Judiciário seria um projeto de médio a longo prazo e começaria guiada por estudos realizados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que defendia a informatização do trâmite de processos, na época totalmente analógico. A ideia do governo era informatizar ao menos um terço das varas do país e comparar os resultados com aquelas ainda não modernizadas por um prazo de seis meses.
Entre janeiro e abril de 2003, porém, Márcio Thomas Bastos buscava um nome para assumir a recém criada Secretaria da Reforma do Judiciário. O professor da FGV-Rio e colunista do Jota, Joaquim Falcão (cuja atuação nesse processo merecerá uma reportagem à parte), chegou a sugerir o nome do hoje governador do Maranhão, Flávio Dino, que à época se destacava à frente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil). Mas, segundo Bastos, a ideia era exatamente escolher alguém de fora da magistratura, pois a própria escolha precisaria ser “simbólica”.
O nome escolhido foi o de Sérgio Rabello Tamm Renault, advogado mineiro formado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Ele estava na posse de Bastos quando o ouviu falar sobre suas prioridades. Coincidentemente, finalizava naquele momento um estudo para o BID, que tinha exatamente como objetivo elaborar um diagnóstico do Judiciário brasileiro, até então pouco conhecido.
Depois de uma série de conversas, bateram o martelo. Sérgio Renault começou a trabalhar no início de maio. Junto com ele chegou Pierpaolo Cruz Bottini, que anos mais tarde substituiria Renault. Ambos passaram a representar Thomaz Bastos pelo país. Logo perceberam que não tirariam uma reforma do papel sem um amplo acordo entre representantes dos três poderes. Em entrevista para o livro “10 anos de Transformação”, lançado no dia 19/12 no Ministério da Justiça, Renault lembra que, de um lado, eles “tomaram muita porrada” de magistrados, que não aceitariam a criação de um conselho totalmente externo, e, de outro, sabiam que existia "uma expectativa do PT e de setores mais à esquerda de que a reforma tinha que começar do zero, baseada na questão do controle externo, sem juiz nenhum no conselho”.
Procura-se um relator
Paralelamente, existia um outro desafio a enfrentar. Como Bernardo Cabral, então relator da PEC 92 (texto que viria a transformar-se na Emenda 45), não foi reeleito para o Senado, o tema estava momentaneamente sem “dono". De qualquer forma, a notícia não era de todo ruim. Cabral, que tinha origem na advocacia, havia alterado totalmente o projeto na CCJ e a aprovação da matéria naquele formato obrigaria à Câmara reavaliar a questão. Além disso, era início de uma nova legislatura, com alta renovação — ou seja, boa parte dos parlamentares não fazia ideia do que estava analisando e dificilmente teria segurança para aprovar o tema.
A primeira decisão da mesa diretora do Senado, com o apoio do Executivo, foi escolher alguém que não tivesse relação com o direito. Entendiam que precisavam de um relator sem visão parcial ou corporativa que pudesse contaminar os debates. O ex-ministro Nelson Jobim conta que existe uma piada nos corredores dentro do congresso sobre as características de um bom relator de projetos: “Um bom relator deve ter a qualidade fundamental de não ter ideias”. Em outras palavras, precisa saber lidar com as divergências, equilibrar interesses difusos e, de fato, não se apegar às próprias sugestões.
Senadores mais antigos da época, Antonio Carlos Magalhães (ex-PFL), Jorge Bornhausen (ex-PFL), José Sarney (PMDB) e Edison Lobão (PMDB), apoiaram o nome de José Jorge, que era da oposição (PFL), mas com experiência em relatar propostas de emenda constitucional e, mais importante do que isso, sem qualquer intimidade com o Judiciário. Poderia, assim, organizar a relatoria com a distância suficiente para aprovar a Reforma. Jorge lembra que seu primeiro instinto foi recusar o convite, mas logo foi convencido do contrário.
Sua primeira decisão foi jogar fora as mudanças aprovadas por Bernardo Cabral — que já estavam prontas para serem analisadas no plenário — e recomeçar o debate na CCJ. Ganhou ali o apoio técnico dos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) Nelson Jobim, então vice-presidente da corte, e Gilmar Mendes.
Ambos funcionavam como interlocutores da Justiça junto ao Executivo e Legislativo. O ministro Maurício Corrêa, então presidente do Supremo, não tinha interesse em aprovar a reforma, considerando como “intromissão indevida” a criação de uma secretaria com o nome de Reforma do Judiciário.
Já Jobim, com vasta experiência política — foi deputado durante a Constituinte, relator da revisão constitucional de 1993, ministro da Justiça nos primeiros anos do governo Fernando Henrique Cardoso e seria o próximo presidente do Supremo —, era o homem ideal para novamente assumir a articulação em nome do tribunal. Via ali, também, a oportunidade perfeita para aprovar as medidas que já havia negociado antes na Câmara e que desafogariam a corte onde ele atuava, tomada por uma enxurrada de processos que chegaram após a Constituição de 1988.
Jobim e Mendes passaram a trabalhar com José Jorge para definir o que entraria e o que ficaria de fora da Emenda 45. Tiveram, entre o fim de 2003 e o ano de 2004, uma série de reuniões noturnas na casa do Senador, onde, à base de bolo de rolo pernambucano e vinho, passaram a organizar os temas prioritários a serem aprovados.
Decidiram, por exemplo, criar dois textos: o primeiro, a PEC 92, não seria alterado, para que pudesse ser aprovado ali mesmo no Senado, sem a necessidade de nova análise da Câmara. Uma outra PEC, com novas propostas, abrigaria ideias mais polêmicas e que poderiam ficar de fora.
“O José Jorge era um craque. Ele se apresentava como caipira, mas um falso caipira, porque sabia de tudo graças aos encontros que tínhamos na casa dele de noite”, lembra Jobim. “E ele era muito prático e sabia lidar com as questões corporativas. Os senadores queriam emendar tudo e ele precisava fazer a emenda andar. Então, ele começou a acertar com os senadores o seguinte: existem dois conjuntos, um imexível, que é aquilo que acertamos como prioritário. O outro, que serviria para abarcar as ideias dos colegas que precisavam marcar e justificar posição. Neste, a gente aceitava o que viesse.”
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*Na próxima reportagem da série, o Jota vai mostrar como Jobim conseguiu convencer Lula a manter na Reforma do Judiciário a aprovação da súmula e repercussão geral, mesmo sob contrariedade de Márcio Thomaz Bastos e sua equipe.

José Jorge

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JOTA

Segunda reportagem da série mostra como foi possível aprovar a Emenda 45 


A Reforma do Judiciário e os acordos para aprová-la

Segunda reportagem da série mostra como foi possível aprovar a Emenda 45