Ana Carolina de Barros Carvalho

Bernardo Fabião

Em entrevista coletiva de encerramento do ano legislativo de 2019,<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> o Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, antecipou que uma das prioridades da agenda da casa para 2020 será a votação do projeto de lei complementar (PLP 32/03) que visa conferir independência ao Banco Central do Brasil (Bacen).
O discurso de Maia se alinha aos objetivos do Governo Federal e do Ministério da Economia, que, em abril de 2019, enviou ao Legislativo sua proposta de lei concernente à autonomia do Bacen (PLP 112/19).<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a><a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> Em paralelo aos PLPs do Executivo e da Câmara, outro projeto sobre o mesmo assunto tramita no Senado, o PLP 19/2019.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
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A concomitância desses três projetos de lei complementar a serem apreciados pelo Congresso na legislatura de 2020 levanta questões: (i) se alguma dessas propostas efetivamente atenderia aos parâmetros internacionais de independência de bancos centrais (IBC) e, se mais de uma, (ii) qual projeto melhor cumpriria o objetivo de munir o Bacen de autonomia.
Internacionalmente, as discussões acerca da estabilidade monetária e financeira de estados soberanos vêm há tempos dedicando atenção à IBC. Após o insucesso generalizado de bancos centrais no controle da inflação nos anos 70, surgiu extensa doutrina para diagnosticar as falhas dos sistemas e sugerir mecanismos para sua correção, a fim de preservar a estabilidade monetária.
A partir dos trabalhos iniciais de Kydland e Prescott e de Barro e Gordon,<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> identificou-se uma tendência à inconsistência entre medidas de política monetária e de política fiscal (time inconsistency of optimal commitment policies), assim como se desenvolveram, como propostas de solução para tal problema, a delegação da política monetária a um banco central de direção conservadora e dotado de independência.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
Em geral, a independência dos bancos centrais é referida como “a habilidade de formular e implementar as políticas de sua atribuição sem indevida influência (ou a percepção de influência)”<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> por parte de agentes políticos (notadamente o Executivo), instituições financeiras ou terceiros.
De forma ampla, a IBC indica que o banco central teria suficiente autonomia, tanto administrativa como operacional, para definir e executar a política monetária sem interferências,<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> e seria um instrumento macroeconômico essencial para lidar com a questão da inconsistência entre as políticas monetária e fiscal e um meio efetivo para reduzir a inflação (especialmente em países desenvolvidos).<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>
A partir dos anos 90, as discussões sobre a IBC transcenderam o campo acadêmico e uma onda de reformas ao arcabouço normativo de bancos centrais (tanto em países desenvolvidos como em economias emergentes) teve início,<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a> fortemente incentivada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI),<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a> com seus relatórios e recomendações.
Nessa época, começou a ser debatida a outorga de autonomia ao Bacen, com o PLP 200/1989.<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a> Desde o início de sua tramitação, a proposta passou por vários comitês da Câmara, mas não chegou a ser votado, sendo então apensado ao PLP 112/2019.
<blockquote class="jota-article__eye">Nesse período, o FMI emitiu diversos relatórios avaliando o caso brasileiro e reportando que, apesar de se poder considerar que o Bacen tem atuado de forma independente na prática, a entidade não goza de autonomia legal. Nesse sentido, o FMI vem recorrentemente instando as autoridades brasileiras a adotar medidas adequadas a conferir ao Bacen a devida independência.</blockquote>
Isso porque, com base na larga literatura sobre IBC, o FMI encampou a visão de que a autonomia é uma característica desejável para os bancos centrais, para assegurar a estabilidade monetária, e passou a estimular (por meio de estudos, relatórios específicos por países e condicionantes em contratos de apoio financeiro)<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a> os estados-membros a implementar reformas internas para atribuir certo nível de independência a suas autoridades monetárias nacionais.<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>
De acordo com estudos do FMI (IMF Working Papers), a efetividade da independência de um banco central pode ser medida por meio de diferentes parâmetros derivados da doutrina. Basicamente, a IBC teria que ser prevista em lei (sendo, portanto, estável – em oposição a uma independência meramente de fato, que não garantiria uma conduta autônoma do banco central de forma consistente ao longo do tempo) e seria mensurável em termos de autonomia política e econômica, desdobradas em diversos indicadores, tais como:<a href="#_ftn15" name="_ftnref15">[15]</a>
<ol>
<li>O objetivo do banco central deve ser único, preservar a estabilidade de preços. Havendo mais de um objetivo, esse deve prevalecer;</li>
<li>Os membros da diretoria do banco central devem ser indicados pelo governo e confirmados pelo congresso, com mandatos que excedam ou não coincidam com o do governo;</li>
<li>A diretoria não deve conter representantes do setor privado (bancos) ou do governo, exceto o ministro da fazenda (ou equivalente), sem direito a voto;</li>
<li>A exoneração de diretores deve ser feita em processo de dois passos (executivo e legislativo/judiciário), por maioria qualificada e em hipóteses legalmente previstas, cabendo a decisão final ao congresso ou tribunal judicial;</li>
<li>Exceto em situações emergenciais objetivamente regulamentadas ou via mercado secundário (com limitações), o banco central não deve conceder crédito ao governo;</li>
<li>A função de lender-of-last-resort deve compreender apenas empréstimos emergenciais legalmente regulados, incluindo limitações ao montante a ser concedido;</li>
<li>O banco central deve ter total independência no uso de instrumentos monetários;</li>
<li>O governo deve dotar o banco central de integridade de capital (independência financeira);</li>
<li>O presidente do banco central deve responder ao congresso e se reportar ao governo, divulgando relatórios periódicos; e</li>
<li>O banco central deve publicar periodicamente suas demonstrações financeiras, certificadas por auditor externo.</li>
</ol>
Em seus relatórios sobre o Bacen,<a href="#_ftn16" name="_ftnref16">[16]</a> o FMI indicou que a autoridade monetária brasileira atende os requisitos 1, 2, 7, 9 e 10; cumpre apenas parcialmente os itens 3, 5 e 8; e não atende os requisitos 4 e 6. Em alguns trechos do mais recente documento, o FMI apontou deficiências do Bacen quanto à IBC adequada, destacando-se:
[The] independence of the BCB has no protection under the law. 
(…) 
The staff of the BCB lack the appropriate legal protection.
(…)
The BCB’s status is vulnerable to being undermined if its Governor can be dismissed for any reason and without the cause being stated. 
(…)
[T]here is no fixed mandate for the term of the Governor, or for Board members.
(…)
[T]he Governor can be dismissed from his/her position at the will of the President and there are no formal reasons for which dismissal can be made and no requirement for there to be a public disclosure of the reasons for dismissal.
Analisando-se os três projetos de lei que tramitam no Congresso sobre o tema, observa-se que o PLP 112/2019 (proposta do Governo Federal, tramitando na Câmara) endereça os requisitos dos itens 3, 4 e 8 acima mencionados, mas o cumprimento do requisito 4 poderia ser questionado, visto que uma das hipóteses de exoneração dos diretores (“apresentarem comprovado e recorrente desempenho insuficiente para o alcance dos objetivos do Banco Central do Brasil” – art. 6º, III, d) poderia ser vista não como um motivo estritamente legal (strictly legal grounds), e sim como uma avaliação sujeita a subjetivismo. Além disso, os requisitos dos itens 5 e 6 do relatório do FMI permaneceriam não atendidos.
Por seu turno, o PLP 19/2019 (em análise no Senado), em sua presente redação, apenas trata das deficiências dos requisitos 3 e 4, e mesmo o atendimento ao item 4 poderia ser contestado (pelas razões do PLP 112/2019). Os requisitos 5, 6 e 8 da avaliação do FMI não são abordados no projeto.
Finalmente, o PLP 32/2003 (na Câmara) é silente quanto aos itens 5, 6 e 8 das recomendações do FMI; incompleto quanto ao requisito 4, ao não estabelecer um processo em dois passos para a exoneração de diretores, com maioria qualificada e por motivos estritamente legais; e geraria distorção no requisito 1 (que já era cumprido pelo Bacen, mas deixaria de sê-lo), pois estabelece como objetivo fundamental do Bacen outro desígnio que não preservar a estabilidade de preços.
Em vista disso, pode-se concluir que o PLP 112/2019, apresentado pelo Executivo, seria a proposta de reforma legislativa que, até o momento, melhor atenderia os parâmetros de avaliação da IBC fixados pelo FMI. De todo modo, mesmo esse projeto de lei ainda não representa a reforma abrangente e idealmente recomendada pelo FMI para a estrutura normativa do Bacen, seguindo a consolidada prática internacional de independência dos bancos centrais.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em: <a href="https://www.camara.leg.br/noticias/628421-maia-faz-balanco-positivo-de-votacoes-da-camara-em-2019/">https://www.camara.leg.br/noticias/628421-maia-faz-balanco-positivo-de-votacoes-da-camara-em-2019/</a> (acesso em 09/01/2020).
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Disponível em: <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2198617">https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2198617</a> (acesso 13/01/2020).
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Os debates sobre a independência do Banco Central ganharam força após o governo de Dilma Rousseff, marcado por críticas de suposta influência na política monetária do Banco Central, especialmente no processo de redução de juros que foi iniciado em 2012.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Disponível em: <a href="https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/135147">https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/135147</a> (acesso 13/01/2020).
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> KYDLAND, Finn E. e PRESCOTT, Edward C., “Rules Rather than Discretion: The Inconsistency of Optimal Plans”, in Journal of Political Economy, 1977, v. 85(3), p. 473; BARRO, Robert J. e GORDON, David B., “A Positive Theory of Monetary Policy in a Natural Rate Model”, in Journal of Political Economy, 1983, v. 91(4), p. 589; BARRO, Robert J. e GORDON, David B. “Rules, Discretion and Reputation in a Model of Monetary Policy”, in Journal of Monetary Economics, 1983, v. 12, p. 101.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> CROWE, Christopher e MEADE, Ellen E., Central Bank Independence and Transparency: Evolution and Effectiveness, IMF Working Paper, 2008, p. 4.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> IMF Policy Paper, Staff Proposal to Update the Monetary and Financial Policies Transparency Code, 2019, p. 9 (tradução livre).
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> MONTEAGUDO, Manuel Monteagudo, “Central banks and ethics: the virtual paradox of transparency and confidentiality mandates” in RUSSO, Costanza A., LASTRA, Rosa Maria e BLAIR, William, Research Handbook on Law and Ethics in Banking and Finance, EBSCO Publishing, 2019, p. 351.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> GOLLWITZER, Sophia e QUINTYN, Marc, The Effectiveness of Macroeconomic Commitment in Weak(er) Institutional Environments, IMF Working Paper, 2010, p. 4.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Crowe e Meade, op. cit., p. 6-7.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> Gollwitzer e Quintyn, op. cit., p. 4.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> Disponível em: <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=21592">https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=21592</a> (acesso em 13/01/2020).
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> KERN, Andreas, REINSBERG, Bernhard e  RAU-GÖHRING, Matthias, “IMF conditionality and central bank Independence”, in European Journal of Political Economy, 2019, v. 59, p. 213.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> CUKIERMAN, Alex, “Central bank independence and monetary policymaking institutions - Past, present and future”, in European Journal of Political Economy, 2008, v. 24, p. 726.
<a href="#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a> JÁCOME H., Luis I., Legal Central Bank Independence and Inflation in Latin America During the 1990s, IMF Working Paper, 2001, p. 18.
<a href="#_ftnref16" name="_ftn16">[16]</a> Idem; ver também: IMF, Brazil – Financial Sector Assessment Program – Detailed Assessment of Observance – Basel Core Principles for Effective Banking Supervision. Prepared by the Monetary and Capital Markets Department, IMF, and the Finance, Competitiveness and Innovation Global Practice, World Bank, 2018.

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JOTA

Análise dos três projetos de lei que tramitam no Congresso sobre o tema: PLPs 112/2019; 19/2019 e 32/2003

Independência do Banco Central: os projetos de lei alcançam o objetivo?

Análise dos três projetos de lei que tramitam no Congresso sobre o tema: PLPs 112/2019; 19/2019 e 32/2003