Pandemia

Arbitragem de investimentos: inconsistência decisória e falta de transparência

Análise sobre as implicações da crise da Covid-19

arbitragem tributária, juros
Crédito: Unsplash

Nos últimos meses, diversos investidores estrangeiros sinalizaram a possibilidade de instaurarem procedimentos arbitrais em face dos seus respectivos Estados hospedeiros. Tais investidores, que firmaram contratos de concessões de infraestrutura em países latino-americanos, estão reagindo às medidas regulatórias emergenciais tomadas durante a pandemia da Covid-19. Esse é o caso de investidores no México, no Peru e também na Guatemala.[i]

No México, investidores se mostraram frustrados com as restrições estatais impostas na produção de energia elétrica renovável, em virtude da queda na demanda no setor provocada pela crise da Covid-19. Já no Peru e na Guatemala, houve a suspensão, pelos usuários, do pagamento de tarifas relacionadas à prestação de serviços públicos em diversos setores. Não obstante a suspensão das cobranças, o governo guatemalteco emitiu decreto emergencial obrigando a continuação de serviços de distribuição de água, energia elétrica e telecomunicações. Enquanto isso, investidores no Peru se mostram apreensivos com a decisão do governo de suspender a cobrança da tarifa de pedágios enquanto permanecer o estado de emergência nacional.

As referidas medidas podem ocasionar o desequilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos com investidores, o que ensejaria disputas para recomposição do equilíbrio contratual. Assim, é possível que se observe o aumento de disputas de investimentos a médio prazo.[ii] Muitas dessas disputas provavelmente serão direcionadas ao International Centre for Settlement of Investment Disputes (ICSID), a principal instituição responsável pela resolução de disputas relativas à interpretação dos contratos entre investidores e hospedeiros, lastreados por tratados internacionais de investimentos.

Para defenderem-se dos pleitos, é provável que os países requeridos se utilizem do argumento de estado de necessidade para sustentar a ausência de responsabilidade sobre a alegada quebra das obrigações contidas nos tratados. Ocorre que o limiar para aplicação desses excludentes de responsabilidade no direito internacional é relativamente alto, tendo sido tratados de forma oscilante pelos tribunais arbitrais de investimento ao longo de sua história recente,[iii] como será visto a seguir.

De acordo com artigo 25 do Projeto de Artigos sobre a Responsabilidade de Estados por Atos Ilícitos Internacionais, elaborado pela Comissão de Direito Internacional da ONU e usualmente empregado para auxiliar na formação e interpretação de tratados de investimento,[iv] o estado de necessidade é configurado se (i) o Estado se encontrar em face de um perigo grave e iminente; (ii) o perigo ameaçar um interesse essencial ao Estado; e, por fim, (iii) o ato estatal em questão for o único meio de garantia desse interesse.

Acordos internacionais de investimentos possuem previsões expressas sobre a aplicabilidade do instituto do estado de necessidade em situações extraordinárias. Acontece, no entanto, que a linguagem textual dos tratados é considerada como indeterminada e relativamente vaga. Assim, na prática, a interpretação dessas previsões fica a cargo das normas costumeiras do direito internacional e de investimentos, que assumem o papel de estabelecer as circunstâncias e contextos fáticos em que se enquadra o estado de necessidade. O problema tem se dado com a divergência entre Tribunais arbitrais do ICSID em determinar quais circunstâncias são essas, mesmo em face de disputas com contextos fáticos análogos.[v]

O argumento do estado de necessidade foi amplamente empregado pela Argentina diante das dezenas de disputas de investimentos surgidas nos anos 2000 em momento de crise econômica e fiscal.[vi]

Por sinal, com a exceção de um único caso,[vii] o argumento do estado de necessidade no contexto regulatório não havia sido apreciado em disputas julgadas pelo ICSID antes.

No contexto da crise Argentina, investidores estrangeiros iniciaram uma série de procedimentos arbitrais contra o país em 2001, alegando, de forma geral, a violação de cláusulas de tratados bilaterais de investimento, principalmente a obrigação de tratamento justo e equitativo.[viii] Essa cláusula é costumeiramente incluída nos tratados bilaterais de investimento com a finalidade de proteger investidores estrangeiros perante a discriminação e arbitrariedade estatal.

Em resposta, em diversos dos procedimentos arbitrais instaurados,[ix] a Argentina chegou a basear a sua defesa na inexistência de violação de cláusulas dos tratados bilaterais. No entanto, de forma geral, a defesa recaiu mais na argumentação de que, mesmo no caso de ter havido alguma violação, a Argentina não poderia ser responsabilizada – tendo em vista que as medidas regulatórias em disputa se deram num contexto de estado de necessidade decorrente da grave crise econômica e política no país.

O argumento foi aceito pelo respectivo tribunal arbitral nos casos LG&E v. Argentina e Continental Casualty v. Argentina, em que a Argentina figurava como requerida, servindo para a mitigação dos danos devidos pelo país.[x]

No entanto, o que chama atenção da doutrina é que, nos demais casos, os tribunais arbitrais negaram a defesa de estado de necessidade, baseando-se em interpretações divergentes quantos aos requisitos necessários para a sua configuração.[xi] Ora decidindo que não havia um interesse essencial do Estado em ameaça, ora decidindo que as medidas regulatórias tomadas não seriam as únicas possíveis diante do contexto.

Ainda que dentro de um mesmo contexto de crise política e econômica, e tratando muitas vezes de circunstâncias fáticas virtualmente idênticas, as decisões apresentaram alto grau de oscilação. Os casos LG&E v. Argentina e CMS v. Argentina, por exemplo, apesar de apresentarem circunstâncias fáticas bastante similares, receberam respostas diametralmente opostas pelos respectivos tribunais arbitrais.

Conforme apontado, o tribunal arbitral foi deferente ao argumento do estado de necessidade naquele, enquanto o tribunal deste não o acatou. Inclusive, não somente as medidas regulatórias em questão eram similares, como as próprias violações sustentadas pelos investidores eram as mesmas, decorrentes da previsão geral de tratamento justo e equitativo prevista nos respectivos tratados bilaterais firmados com a Argentina – o que contribui ao teor de incerteza das decisões do ICSID sobre o tema.

Essas disputas servem de alerta para uma possível inconsistência decisória dos tribunais arbitrais quando levados a julgar a violação de cláusulas de tratados bilaterais em face de alegações de estado de necessidade. Assim, é possível, e até provável, que venhamos a observar um cenário de oscilação e incerteza em relação às disputas que surgirem devido à pandemia, sobretudo no que tange à aplicabilidade do instituto como forma de justificar medidas regulatórias emergenciais. Deve-se considerar, no entanto, que a pandemia já demonstrou que terá impactos diversos nos diferentes países, de modo que certa inconsistência decisória seja, até certa medida, justificada perante diferentes contextos.

Além disso, o fato de grande parte dos contratos de investimentos terem como objeto a prestação de serviços públicos pode atrair a atenção de diferentes setores da sociedade civil, demandando maior transparência decisória da instituição. Esta tem sido uma grande tensão enfrentada pelo atual modelo da arbitragem investidor-Estado.

Ao dispor de confidencialidade e privacidade em diversos casos atrelados a políticas públicas estatais, o atual modelo estaria inibindo a participação de agentes interessados da sociedade civil em disputas capazes de gerar alta polarização política e social, possivelmente promovendo um certo déficit democrático-institucional e provocando uma diminuição da legitimidade do ICSID.[xii]

Nesse contexto, uma das respostas processuais que se pode esperar dos tribunais para promover a transparência nos procedimentos relacionados à Covid-19 é admissão de atores não estatais como amici curiae, mecanismo que tem sido desenvolvido pela jurisprudência do ICSID. O caso Suez and Vivendi v. Argentina.[xiii] também surgido diante da crise argentina, é visto como um caso paradigmático, que serviu como vetor para uma alteração normativa no ICSID com a finalidade de viabilizar a participação de agentes interessados na posição de amici curiae.

O caso Suez envolveu a revisão de tarifas no setor de distribuição de água e saneamento e serviu para estimular a participação de representantes da sociedade civil e organizações não governamentais na defesa ao direito humano à água e suas implicações sanitárias. Essa foi a primeira vez que atores não estatais participaram como amici curiae na jurisdição do ICSID, e, um ano após a emissão da sentença final – devido à grande pressão pública que se amontoava –, o ICSID emendou às suas regras específicas de regulamentação o instituto do amicus curiae.

É de se esperar que a legitimidade da jurisdição do ICSID enfrente uma série de desafios nos próximos meses. Com o agravamento da pandemia da Covid-19, espera-se o surgimento de novas demandas de investidores contra hospedeiros – o que colocará em xeque a consistência de critérios para aplicação do instituto do estado de necessidade pelos árbitros do ICSID.[xiv] Além disso, em um contexto sem precedentes, o ICSID tende a sofrer ainda mais pressão da sociedade civil cobrando o oferecimento de instrumentos processuais destinados a darem maior transparência e accountability aos casos advindos da pandemia, que tocam em temas sensíveis à sociedade.[xv]

 

***Este artigo expressa a opinião dos autores, não representando necessariamente a opinião institucional da FGV.

 


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[i]  Foreign investment protection and investor-state arbitration in times of Covid-19. Disponível em: https://www.lexology.com/library/detail.aspx?g=92f3e3bc-3b96-4017-b7d1-eee14f11016a

[ii] The COVID-19 Crisis and Investment Arbitration: A Reflection From the Developing Countries. Disponível em:

http://arbitrationblog.kluwerarbitration.com/2020/04/21/the-covid-19-crisis-and-investment-arbitration-a-reflection-from-the-developing-countries/?doing_wp_cron=1595374326.9858999252319335937500

[iii] A doutrina internacional observa as decisões do ICSID em relação ao instituto do estado de necessidade como “divergentes”, “conflitantes” e “inconsistentes”. Ver Harrington, A.; Kent, A. The Plea of Necessity under Customary International Law: a Critical Review in light of the Argentina Cases. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/books/evolution-in-investment-treaty-law-and-arbitration/plea-of-necessity-under-customary-international-law-a-critical-review-in-light-of-the-argentine-cases/65A4EFB7446D1604E5B347FFE71E4CFB; Galvez, C. “Necessity”, Investor Rights, and Sovereignty for NAFTA Investment Arbitration, Disponível em: < https://www.lawschool.cornell.edu/research/ILJ/upload/Galvez-final.pdf>; Waibel, M. Two Worlds of Necessity in ICSID Arbitration: CMS and LG&E. Disponível em: < https://www.researchgate.net/publication/228213318_Two_Worlds_of_Necessity_in_ICSID_Arbitration_CMS_and_LGE>.

[iv] Ver Galvez, C. “Necessity”, Investor Rights, and Sovereignty for NAFTA Investment Arbitration, Disponível em: < https://www.lawschool.cornell.edu/research/ILJ/upload/Galvez-final.pdf>;

[v] Harrington, A; Kent, A. The plea of necessity under customary international law: A critical review in light of the Argentine cases. Disponível em: < https://www.cambridge.org/core/books/evolution-in-investment-treaty-law-and-arbitration/plea-of-necessity-under-customary-international-law-a-critical-review-in-light-of-the-argentine-cases/65A4EFB7446D1604E5B347FFE71E4CFB>.

[vi]  Ver, por exemplo, Sempra Energy International v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/02/16; CMS Gas Transmission Company v. The Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/01/8; Suez, Sociedad General de Aguas de Barcelona, S.A. and Interagua Servicios Integrales de Agua, S.A. v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/03/17; Suez, Sociedad General de Aguas de Barcelona, S.A. and Vivendi Universal, S.A., ICSID Case No. ARB/03/19.

[vii] Funnekotter v. Zimbabwe, ICSID Case No. ARB/05/6.

[viii] Ver, por exemplo, Enron Creditors Recovery Corporation and Ponderosa Assets, L.P. v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/01/3; CMS Gas Transmission Company v. The Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/01/8; Siemens A.G. v. The Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/02/8; Azurix Corp. v. The Argentine Republic (I), ICSID Case No. ARB/01/12; Sempra Energy International v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/02/16; LG&E Energy Corp., LG&E Capital Corp. and LG&E International Inc. v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/02/1; AES Corporation v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/02/17; Telefónica S.A. v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/03/20; Sociedad General de Aguas de Barcelona, S.A. and Vivendi Universal, S.A., ICSID Case No. ARB/03/19; Pioneer Natural Resources Company, Pioneer Natural Resources (Argentina) S.A. and Pioneer Natural Resources (Tierra del Fuego) S.A. v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/03/12; Pan American Energy LLC and BP Argentina Exploration Company v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/03/13; National Grid PLC v. The Argentine Republic, ICSID; Metalpar S.A. and Buen Aire S.A. v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/03/5; Gas Natural SDG, S.A. v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/03/10; El Paso Energy International Company v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/03/15; EDF International S.A., SAUR International S.A. and León Participaciones Argentinas S.A. v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/03/23; Suez, Sociedad General de Aguas de Barcelona, S.A. and Interagua Servicios Integrales de Agua, S.A. v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/03/17, SAUR International v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/04/4; Continental Casualty Company v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/03/9; Camuzzi International S.A. v. Argentine Republic (I), ICSID Case No. ARB/03/2; Azurix Corp. v. Argentine Republic (II), ICSID Case No. ARB/03/30; Urbaser S.A. and Consorcio de Aguas Bilbao Biskaia, Bilbao Biskaia Ur Partzuergoa v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/07/26; Impregilo S.p.A. v. Argentine Republic (I), ICSID Case No. ARB/07/17, entre outros.

[ix] CMS Gas Transmission Company v. The Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/01/8; Enron Creditors Recovery Corporation and Ponderosa Assets, L.P. v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/01/3, Sempra Energy International v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/02/16; CMS Gas Transmission Company v. The Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/01/8;  Suez, Sociedad General de Aguas de Barcelona, S.A. and Interagua Servicios Integrales de Agua, S.A. v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/03/17; Suez, Sociedad General de Aguas de Barcelona, S.A. and Vivendi Universal, S.A., ICSID Case No. ARB/03/19, El Paso Energy International Company v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/03/15, National Grid PLC v. The Argentine Republic, ICSID, Impregilo S.p.A. v. Argentine Republic (I), LG&E Energy Corp., LG&E Capital Corp. and LG&E International Inc. v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/02/1, Continental Casualty Company v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/03/9, entre outros.

[x] LG&E Energy Corp., LG&E Capital Corp. and LG&E International Inc. v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/02/1; Continental Casualty Company v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/03/9.

[xi] CMS Gas Transmission Company v. The Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/01/8; Enron Creditors Recovery Corporation and Ponderosa Assets, L.P. v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/01/3; Sempra Energy International v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/02/16; Suez, Sociedad General de Aguas de Barcelona, S.A. and Interagua Servicios Integrales de Agua, S.A. v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/03/17; Suez, Sociedad General de Aguas de Barcelona, S.A. and Vivendi Universal, S.A., ICSID Case No. ARB/03/19; El Paso Energy International Company v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/03/15; National Grid PLC v. The Argentine Republic, ICSID; Impregilo S.p.A. v. Argentine Republic (I), ICSID Case No. ARB/07/17; Harrington, A; Kent, A. The plea of necessity under customary international law: A critical review in light of the Argentine cases. Disponível em: < https://www.cambridge.org/core/books/evolution-in-investment-treaty-law-and-arbitration/plea-of-necessity-under-customary-international-law-a-critical-review-in-light-of-the-argentine-cases/65A4EFB7446D1604E5B347FFE71E4CFB>; Subramanian, R. Too Similar or Too Different: State of Necessity as a Defence Under Customary International Law and the Bilateral Investment Treaty and Their Relationship. Disponível em: < https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2975904>.

[xii] Ver Subramanian, R. Too Similar or Too Different: State of Necessity as a Defence Under Customary International Law and the Bilateral Investment Treaty and Their Relationship. Disponível em: < https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2975904>.

[xiii] Suez, Sociedad General de Aguas de Barcelona, S.A. and Vivendi Universal, S.A. v. Argentine Republic, ICSID Case No. ARB/03/19.

[xiv] Ver Subramanian, R. Too Similar or Too Different: State of Necessity as a Defence Under Customary International Law and the Bilateral Investment Treaty and Their Relationship. Disponível em: < https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2975904>.